A Colheita


A humanidade toma partido...
À medida que o mundo se precipita em direção aos Juízos das Trombetas e à grande colheita de vidas profetizados nas Escrituras, Rayford Steele e Buck Williams começam a buscar aqueles a quem amam em vários cantos do mundo. A Colheita leva você do Iraque à América do Norte, de aviões a quilômetros de altura a abrigos subterrâneos, das areias do deserto ao fundo do Rio Tigre, da esperança à devastação e de volta à esperança - numa intensa busca pela verdade e pela vida. Primeiro Capítulo
Rayford Steele estava usando o uniforme do inimigo de sua alma, e odiava a si mesmo por isso. Caminhou pelas areias do Iraque em direção ao aeroporto de Bagdá trajando seu uniforme azul, completamente atordoado pela incoerência de tudo aquilo.

Do outro lado da planície árida vinham lamentos e gritos de centenas de pessoas que ele nem sequer podia começar a ajudar. Qualquer tentativa de encontrar sua mulher com vida dependia da rapidez com que ele chegasse até ela. Mas pressa era o que não existia ali. Só areia. E o que teria acontecido a Chloe e Buck nos Estados Unidos? E a Tsion?

Desesperado, agindo impensadamente e louco de frustração, ele rasgou seu colete de debruns amarelos, pesadas dragonas e insígnias que o identificavam como o piloto mais importante da Comunidade Global. Sem perder tempo para desabotoar os maciços botões dourados, Rayford arrancou-os com força, e eles espalharam-se pelo chão do deserto. Ele deixou o paletó cair por trás dos ombros e segurou a gola com firmeza. Com três, quatro ou cinco movimentos, tirou o paletó pela cabeça e atirou-o ao chão, fazendo levantar uma onda de poeira. Seus sapatos de couro ficaram cobertos de areia.

Rayford pensou em abandonar todos os vestígios de sua ligação com o regime de Nicolae Carpathia, mas sua atenção foi dirigida novamente para as suntuosas insígnias de seu uniforme. Investiu contra elas na tentativa de arrancá-las, parecendo querer livrar-se do posto que ocupava a serviço do anticristo. Porém, o alfaiate não deixara um mínimo espaço entre as costuras, e Rayford atirou outra vez o paletó ao chão. Enquanto o pisoteava e o chutava para desabafar sua raiva, Rayford finalmente entendeu por que o paletó estava mais pesado que o normal. Ele havia deixado seu telefone celular no bolso.

Ao ajoelhar-se para recolher o paletó do chão, Rayford voltou a raciocinar com lógica - uma de suas características principais. Por não ter idéia do que encontraria nas ruínas do condomínio onde morava, ele não poderia dispensar aquilo que talvez fosse sua única muda de roupas.

Vestiu novamente o paletó e arregaçou as mangas como os meninos costumam fazer em dias quentes. Sem se importar com a areia grudada no paletó e demonstrando profundo abatimento, Rayford caminhou em direção aos escombros do aeroporto. Ele podia passar por um sobrevivente de acidente aéreo, um piloto que perdera o quepe e os botões de seu uniforme.

Em todos aqueles meses que estava morando no Iraque, Rayford não se lembrava de ter sentido arrepios de frio durante o dia, antes do pôr-do-sol. Contudo, aquele terremoto talvez tivesse mudado não apenas a topografia, mas também a temperatura do local. Rayford acostumara-se a sentir a camisa molhada de suor, grudada na pele como um adesivo. Mas agora aquele vento inusitado e misterioso provocava-lhe calafrios enquanto ele discava para Mac McCullum e encostava o fone ao ouvido.

Em questão de segundos, ele ouviu o ruído do motor e das hélices do helicóptero de Mac atrás de si. Para onde eles estariam se dirigindo?

- Aqui é Mac - soou a voz grave de McCullum.

Rayford girou o corpo e viu a figura do helicóptero passar diante do sol poente.

- Não posso acreditar que este telefone ainda funcione - disse Rayford. Além de tê-lo atirado ao chão e, depois, o chutado, ele imaginava que o terremoto devia ter destruído as torres de transmissão da redondeza.

- Assim que eu sair fora da área de alcance, ele não funcionará mais, Ray - disse Mac. - Tudo o que vejo daqui está destruído. Esses aparelhos funcionam como walkie-talkies quando a distância é pequena. Quando precisamos que eles funcionem, não conseguimos nada.

- Então qualquer possibilidade de ligar para os Estados Unidos...

- Está fora de cogitação - disse Mac. - Ray, o potentado Carpathia quer falar com você, mas antes...

- Eu não quero falar com ele, e você pode dizer-lhe isso.

- Mas, antes de colocar o potentado na linha - prosseguiu Mac -, não se esqueça de que aquela nossa reunião, sua e minha, continua marcada para esta noite. Certo?

Rayford diminuiu os passos e olhou para o chão, passando a mão pelos cabelos.

- O quê? De que reunião você está falando?

- Então está tudo certo, ótimo - disse Mac. - A reunião será esta noite. Agora o potentado...

- Estou entendendo que você deseja conversar comigo mais tarde, Mac, mas, se Carpathia entrar na linha, juro que...

- Aguarde para falar com o potentado.

Rayford passou o fone para a mão direita, pronto para arremessá-lo ao chão, mas se conteve. Quando o sistema telefônico voltasse ao normal, ele queria ter condições de comunicar-se com as pessoas que amava.

- Capitão Steele - soou a voz de Carpathia, sem nenhum traço de emoção.

- Pois não - disse Rayford, demonstrando toda a aversão que sentia. Ele esperava que Deus o perdoasse por tudo o que diria ao anticristo, mas engoliu as palavras.

- Apesar de nós dois sabermos como eu reagiria à sua terrível insolência e insubordinação - disse Carpathia -, decidi perdoá-lo.

Rayford continuou a caminhar, cerrando os dentes para não gritar com aquele homem.

- Entendo o quanto você está constrangido por ter de agradecer-me - prosseguiu Carpathia -, mas preste atenção. Tenho um local seguro e bem abastecido onde meus assessores e embaixadores internacionais irão ao meu encontro. Você e eu sabemos que precisamos um do outro, portanto sugiro...

- O senhor não precisa de mim - retrucou Rayford. - E eu não preciso de seu perdão. O senhor tem um piloto competente a seu lado, por isso é melhor esquecer que eu existo.

- Esteja pronto para subir a bordo quando ele pousar - disse Carpathia, demonstrando pela primeira vez um tom de frustração na voz.

- Eu só estava precisando de uma carona até o aeroporto - disse Rayford -, mas já estou quase lá. Não deixe que Mac pouse perto deste caos.

- Capitão Steele - disse Carpathia, voltando a ser condescendente. - Admiro sua teimosia em pensar que poderá encontrar sua esposa com vida, mas nós dois sabemos que isso é impossível.

Rayford não retrucou. Temia que Carpathia estivesse certo, mas jamais lhe daria a satisfação de admitir isso. E Rayford não desistiria de sua busca enquanto não tivesse plena certeza de que Amanda não sobrevivera.

- Venha nos fazer companhia, capitão Steele. Suba novamente a bordo. Vou agir como se sua explosão de raiva nunca...

- Não irei a lugar nenhum antes de encontrar minha mulher! Deixe-me falar com Mac.

- O piloto McCullum está ocupado. Posso transmitir-lhe o seu recado.

- Mac é capaz de pilotar essa coisa sem as duas mãos. Agora me deixe falar com ele.

- Se você não quiser passar seu recado, então, capitão Steele...

- Está bem, o senhor venceu. Diga a Mac que...

- O momento não é apropriado para abandonar o protocolo, capitão Steele. Um subordinado que acabou de ser perdoado deve dirigir-se a seu superior...

- Está bem, potentado Carpathia, diga a Mac para vir me buscar se eu não conseguir sair daqui até às 22 horas.

- E, se você conseguir sair, o abrigo fica a três quarteirões e meio a noroeste do local onde era a sede da Comunidade Global. Você precisará desta senha: "Operação Ira".

- O quê? - Carpathia sabia que isso ia acontecer?

- Você entendeu, capitão Steele.



Cameron "Buck" Williams caminhou cuidadosamente por entre os entulhos próximos à abertura de ventilação onde ouvira a voz clara e forte do rabino Tsion Ben-Judá, que estava preso no abrigo subterrâneo. Tsion assegurou-lhe que não sofrera nenhum ferimento; só estava assustado e com uma sensação de claustrofobia. O local era pequeno demais mesmo que a igreja não tivesse desabado em cima dele. Sem ter condições de sair dali, a não ser que alguém cavasse um túnel até ele, em breve o rabino sentir-se-ia como um animal enjaulado.

Se Tsion estivesse em perigo iminente, Buck teria cavado um túnel com as mãos para libertá-lo. Mas agora ele teria de agir como um médico fazendo uma triagem e decidir quem necessitava de sua ajuda com mais urgência. Depois de afirmar a Tsion que voltaria, Buck dirigiu-se para a casa secreta com o objetivo de encontrar sua mulher.

Para atravessar no meio dos escombros da igreja, a única que ele freqüentara, Buck teve de rastejar-se e passar novamente pelos restos mortais da querida Loretta. Que amiga ela havia sido, primeiro de Bruce Barnes, que estava morto, e depois dos remanescentes do Comando Tribulação. O grupo começara com quatro pessoas: Rayford, Chloe, Bruce e Buck. Amanda veio depois. Tsion passou a fazer parte após a morte de Bruce.

Será que agora o grupo estaria reduzido apenas a Buck e Tsion? Buck não queria pensar nisso. Ele encontrou seu relógio grudado de lama, asfalto e um caco de vidro do pára-brisa do carro. Ao limpar o mostrador de cristal na perna da calça, aquela mistura de lama, asfalto e caco de vidro rasgou o tecido e fez um corte em seu joelho. O relógio marcava nove horas da manhã em Monte Prospect, e Buck ouviu o som de uma sirene aérea, outro de sirene que avisa a chegada de tornados e um terceiro de sirene de veículos de emergência - um deles estava próximo; os demais vinham de lugares distantes. Ouviam-se também gritos agudos, berros, soluços, motores funcionando.

Será que ele conseguiria viver sem Chloe? Buck havia tido uma segunda chance; sua presença ali tinha um propósito. Ele queria estar perto do amor de sua vida, e orou para que ela não tivesse ido para o céu antes dele, apesar de saber que essa era uma atitude egoísta.

Ao olhar para baixo, Buck viu um inchaço em sua bochecha esquerda. Como o local não doera nem sangrara, ele havia entendido que o corte devia ser pequeno, mas agora aquele ferimento começou a preocupá-lo. Ele enfiou a mão no bolso da camisa e pegou seus óculos de sol de lentes espelhadas. Uma delas estava esmigalhada. No reflexo da outra, ele viu a figura de um mendigo de cabelos desgrenhados, olhos aterrorizados e boca aberta como se lhe faltasse o ar. O corte não estava sangrando, mas parecia profundo. Não havia tempo para cuidar dele.

Buck esvaziou o bolso da camisa e só deixou ali a armação dos óculos - um presente de Chloe. Dirigiu-se para o Range Rover, passando com cuidado por cima de vidros, pregos e tijolos como se fosse um homem idoso tentando equilibrar-se.

Passou pelo carro de Loretta e pelo que restara dela, determinado a não voltar a ver aquela cena. De repente, a terra moveu-se, e ele cambaleou. O carro de Loretta, que ele não conseguira fazer sair do lugar momentos antes, rolou e desapareceu. O chão do estacionamento abriu-se. Buck deitou-se de bruços no chão e olhou dentro da fenda recém-aberta. O carro destroçado estava apoiado em cima de uma tubulação de água a cerca de três metros abaixo da terra. Os pneus furados apontavam para cima como se fossem pés inchados de um andarilho. Enrolado como uma frágil bola em cima dos escombros do carro estava o corpo de Loretta, uma santa da tribulação. Provavelmente a terra tremeria novamente. Alcançar o corpo de Loretta seria uma missão impossível. Se ele também tivesse de encontrar Chloe morta, seria melhor que Deus o atirasse para baixo da terra junto com o carro de Loretta.

Buck levantou-se devagar, dando-se conta de repente do quanto aquele sobe-e-desce provocado pelo terremoto afetara suas articulações e músculos. Ele examinou os estragos de seu carro. Apesar de ter rolado e colidido de todos os lados, o carro parecia estar em boas condições de rodagem. A porta do lado do motorista não abria. Cacos de vidro do pára-brisa espalhavam-se por todo o interior do carro, e o banco traseiro estava quebrado de um dos lados. Um pneu tinha sofrido um corte até as cintas de aço, mas não se esvaziara completamente.

Onde estariam o telefone e o laptop de Buck? Ele os deixara em cima do banco da frente e torcia para que não tivessem sido atirados para fora do carro no momento da catástrofe. Buck abriu a porta do lado do passageiro e examinou o chão do carro. Nada. Olhou por baixo dos bancos traseiros. Nada. Em um canto do carro, aberto e com uma das dobradiças da tela quebrada, estava o seu laptop.

O telefone foi encontrado dentro da bolsa interna de uma das portas. Buck não esperava que ele estivesse funcionando em razão dos estragos sofridos pelas torres de transmissão dos telefones celulares (e tudo o mais que havia sobre a terra). Buck ligou o telefone. Após um teste automático, o visor indicou raio de distância zero. Mesmo assim, ele tentou fazer uma ligação. Discou para a casa de Loretta. Não recebeu nenhum sinal de defeito, nem sequer uma mensagem da companhia telefônica. O mesmo aconteceu quando ele ligou para a igreja e depois para o abrigo de Tsion. Parecendo estar fazendo uma brincadeira cruel com Buck, o telefone emitia ruídos estranhos, como se a ligação estivesse prestes a ser completada. Depois, nada.

Buck perdera seus pontos de referência. Ainda bem que o Range Rover tinha uma bússola embutida. Até mesmo a igreja parecia ter mudado de posição. Ele avistou postes, fios elétricos e semáforos no chão, edifícios desabados, árvores com as raízes expostas e muros destruídos.

Buck acionou a tração nas quatro rodas. Depois de rodar pouco mais de seis metros, ele teve de pisar fundo no acelerador para passar por cima de uma elevação. Seus olhos estavam atentos para evitar que o Rover sofresse mais avarias - ele precisava durar até o fim da Tribulação. Buck imaginava que isso se daria dali a cinco anos.

Enquanto passava por cima de pedaços de asfalto e concreto no local onde um dia existira uma rua, ele olhou novamente para os escombros da Igreja Nova Esperança. Metade do edifício estava soterrada. E aquela fileira de bancos, que antes estavam de frente para o oeste, agora estavam de frente para o norte e brilhavam à luz do sol. Todo o piso do templo parecia ter dado uma virada de 90 graus.

Ao passar diante da igreja, ele parou para examiná-la. Um raio de luz brilhava entre cada par de bancos de um conjunto de dez bancos. Apenas um local não recebia essa iluminação. Havia alguma coisa ali que bloqueava a visão de Buck. Ele engatou a marcha a ré e acelerou devagar. No chão, diante de um daqueles bancos, ele avistou as solas furadas de um par de tênis, com os dedos apontados para cima. O principal objetivo de Buck naquele momento era chegar à casa de Loretta e procurar por Chloe, mas ele não podia deixar uma pessoa no meio daqueles entulhos. Haveria algum sobrevivente?

Buck puxou o freio de mão, passou por cima do banco de passageiro e desceu, andando por cima de objetos que poderiam cortar seus pés. Ele queria ser prático, mas não havia tempo para isso. Perdeu o equilíbrio quando estava a uns três metros do par de tênis e caiu de frente, aparando a queda com as palmas das mãos e o peito.

Depois de levantar-se, ele ajoelhou-se perto do par de tênis que estava calçado nos pés de um corpo. As pernas, vestidas com calça jeans de tom azul-escuro, eram finas, e os quadris, estreitos. A parte da cintura para cima estava sob o banco, com a mão direita oculta debaixo do corpo, e a esquerda, aberta. Buck não encontrou pulsação, mas percebeu que a mão grande e ossuda era de homem. No terceiro dedo, havia uma aliança. Buck a retirou imaginando que uma possível esposa sobrevivente haveria de querê-la.

Arrastando o corpo pelo cinto, Buck conseguiu tirá-lo debaixo do banco. Quando a cabeça ficou visível, ele reconheceu as sobrancelhas loiras de Donny Moore. O cabelo e as costeletas estavam empastados de sangue.

Buck não sabia o que fazer com um morto em tempos como aqueles. Onde seriam colocados os milhões de corpos do mundo inteiro? Resolveu empurrá-lo de volta para baixo do banco, mas encontrou resistência. Ao passar a mão pelo local, encontrou a maleta robusta e surrada de Donny. Tentou abri-la, mas o segredo estava acionado. Levou a maleta até o Range Rover e tentou novamente encontrar um ponto de referência. Ele estava a uns quatro quarteirões da casa de Loretta, mas será que encontraria a rua?



Rayford muniu-se de coragem para ver o que se passava nos arredores do aeroporto de Bagdá. Havia mais escombros e corpos estendidos no chão do que gente correndo assustada, mas pelo menos nem tudo estava perdido.

Uma pequena silhueta escura, andando de modo esquisito, surgiu no horizonte. Rayford olhou fascinado enquanto o vulto se aproximava e viu que se tratava de um asiático de meia-idade, trajando terno. O homem caminhou em sua direção, e ele aguardou ansioso, imaginando se poderia ajudá-lo. Porém, quando o homem chegou mais perto, Rayford percebeu que ele não tinha noção de direção e caminhava a esmo. Um dos pés estava calçado com um sapato social de bico fino. O outro estava descalço, e via-se apenas uma meia escorregando pelo tornozelo. O paletó do terno estava abotoado, e a gravata, afrouxada, pendia por cima de uma das lapelas. Da mão esquerda, pingavam algumas gotas de sangue. Ele tinha os cabelos desgrenhados, mas os óculos pareciam não ter sofrido nenhum impacto, apesar das agruras pelas quais ele devia ter passado.

- O senhor está bem? - perguntou Rayford. Não houve resposta.- Posso ajudá-lo?

O homem passou por ele resmungando em sua própria língua. Rayford virou-se para abordá-lo novamente, mas o homem prosseguiu seu caminho e transformou-se em um vulto diante do sol alaranjado. Não havia nada naquela direção, a não ser o rio Tigre.

- Espere! - gritou Rayford correndo atrás dele. - Volte aqui! Deixe-me ajudá-lo!

O homem não lhe deu atenção. Rayford voltou a ligar para Mac.

- Deixe-me falar com Carpathia.

- Claro - disse Mac. - Nossa reunião continua marcada para hoje à noite, certo?

- Certo. Agora deixe-me falar com ele.

- Eu estou falando da reunião entre mim e você, certo?

- Sim! Não sei o que você quer, mas, sim, já entendi. Agora preciso falar com Carpathia.

- Está bem, desculpe-me. Fale com ele.

- Mudou de idéia, capitão Steele? - perguntou Carpathia.

- Mais ou menos. Diga-me uma coisa. O senhor conhece os idiomas asiáticos?

- Alguns. Por quê?

- O que isto significa? - perguntou Rayford, repetindo o que o homem dissera.

- Ah, isso é fácil - respondeu Carpathia. - Significa "Você não pode ajudar-me. Deixe-me em paz".

- Quero falar de novo com Mac, por favor. Esse homem vai morrer abandonado por aí.

- Pensei que você estivesse procurando sua mulher.

- Não posso deixar um homem andando a esmo até morrer.

- Milhões de pessoas estão mortas ou morrendo. Você não pode salvar todas elas.

- Então o senhor vai permitir que esse homem morra?

- Daqui não posso ver onde ele está, capitão Steele. Se você achar que pode salvá-lo, vá em frente. Não quero parecer insensível, mas tenho gente demais para cuidar neste momento.

Rayford desligou o telefone e correu na direção do homem que caminhava a esmo balbuciando algumas palavras. Quando chegou mais perto, entendeu, horrorizado, por que seu modo de andar era tão esquisito e por que ele deixava um rasto de sangue atrás de si. Espetado em seu corpo havia um pedaço reluzente de metal, aparentemente um fragmento de fuselagem. Rayford não entendia como ele ainda continuava vivo, como sobrevivera ou saíra do avião. O fragmento estava preso desde o quadril até a parte posterior da cabeça. Por pouco, não atingira os órgãos vitais.

Rayford tocou no ombro do homem, fazendo-o recuar um pouco. Depois disso, o desconhecido sentou-se pesadamente na areia, deu um suspiro profundo e expirou. Rayford tomou-lhe a pulsação, mas não se surpreendeu ao não sentir nada. Arrasado, ele ajoelhou-se na areia, de costas para o homem. Os soluços faziam todo o seu corpo estremecer.

Rayford levantou as mãos para o céu.

- Por que, meu Deus? Por que tenho de ver esta cena? Por que puseste alguém no meu caminho que não pude sequer ajudar? Poupa a vida de Chloe e Buck! Eu te suplico que devolvas Amanda viva para mim! Sei que não mereço nada, mas não posso viver sem ela!





Normalmente, quando Buck ia de carro da igreja até a casa de Loretta, ele costumava rodar dois quarteirões no sentido sul e dois no sentido leste. Mas agora não havia mais quarteirões, nem calçadas, nem ruas, nem cruzamentos. Até onde sua vista alcançava, todas as casas da vizinhança haviam desabado. Será que essa catástrofe acontecera no mundo inteiro? Tsion dissera que um quarto da população mundial seria vitimado pela ira do Cordeiro. Buck, porém, ficaria surpreso se um quarto da população de Monte Prospect ainda estivesse viva.

Ele dirigiu o Range Rover para a região sudeste. Um pouco acima do horizonte, o dia mostrava-se tão lindo como Buck nunca se lembrava de ter visto. O céu, sem nenhuma fumaça ou poeira, tinha a tonalidade azul de uma roupa de bebê.. Nenhuma nuvem. Apenas o sol reluzente.

Dos hidrantes destroçados, a água subia em forma de chafariz. Uma mulher arrastava-se tentando sair das ruínas de sua casa. No ombro, onde o braço havia sido arrancado, havia um coto sangrando. Ela gritou para Buck:

- Mate-me! Mate-me!

- Não! - ele gritou, saindo do Rover.

A mulher curvou-se, pegou um caco de uma vidraça quebrada e passou-o pelo pescoço. Buck continuou a gritar correndo em sua direção. Ele só esperava que ela não tivesse forças para fazer um corte muito profundo no pescoço e orou para que o ferimento não atingisse a carótida.

Quando ele se aproximou mais, ela lançou-lhe um olhar arregalado de medo, de susto. O caco de vidro caiu no chão. Ela afastou-se cambaleando e bateu a cabeça com força em um pedaço de concreto. Imediatamente, o sangue parou de jorrar de suas artérias expostas. Os olhos dela estavam sem vida. Buck forçou para abrir a mandíbula da mulher e fez respiração boca a boca. O peito dela inflou-se, e as artérias verteram um pouco mais de sangue, mas tudo foi em vão.

Buck olhou ao redor, perguntando a si mesmo se deveria cobrir o corpo da mulher. Do lado contrário, havia um senhor idoso em pé à beira de uma cratera, parecendo prestes a atirar-se dentro dela. Buck não podia mais suportar aquilo. Estaria Deus preparando-o para ver outra cena igual se Chloe não tivesse sobrevivido?

Subindo exausto no Range Rover, ele decidiu que não pararia mais para ajudar outra pessoa que não quisesse ser ajudada. Por todos os lugares que ele olhava, só via devastação, fogo, água e sangue.



Contrariando seu modo de ser, Rayford deixou o homem morto na areia do deserto. O que ele faria se visse outras pessoas nas mesmas condições? Como Carpathia podia ser insensível a tudo isso? Será que ele não tinha um pingo de humanidade? Mac teria permanecido ali e ajudado.

Rayford estava desesperado para encontrar Amanda viva. Apesar de saber que seu único objetivo no momento seria procurá-la, ele desejava ter marcado mais cedo o encontro com Mac. Já presenciara coisas terríveis na vida, mas a mortandade naquele aeroporto superou a tudo. Um abrigo, mesmo que fosse do anticristo, parecia melhor do que aquela cena diante dele.