Tire suas dúvidas sobre A Paixão de Cristo

Perguntas e respostas para ajudar a entender melhor a polêmica do filme de Mel Gibson.
Por Marcio Antonio Campos
retirado do endereço:
http://www.guiadasemana.com.br/noticias.asp?ID=11&cd_news=166

Desde que as filmagens de A Paixão de Cristo começaram, o filme de Mel Gibson (na foto, orientando Jim Caviezel) se viu rodeado de polêmica. Organizações judaicas denunciaram o longa como anti-semita, críticos disseram que a obra continha uma dose exagerada de violência, e as próprias convicções pessoais do diretor viraram assunto de discussão. O Guia da Semana preparou uma lista de perguntas e respostas para ajudá-lo a entender melhor não apenas o filme e alguns de seus simbolismos, mas também o pano de fundo que envolve a produção, do ponto de vista das crenças de Mel Gibson, católico praticante.

O filme é anti-semita?
Não (na opinião deste repórter, que assistiu ao filme). O próprio presidente da Liga Anti-Difamação, organização norte-americana que combate o anti-semitismo, disse que nem o longa, nem Mel Gibson eram anti-semitas. Abraham Foxman alertou, no entanto, que o filme pode realmente incentivar o ódio aos judeus em mentes já predispostas ao anti-semitismo.

Em A Paixão, fica muito claro que os vilões da história são os romanos e os fariseus - não o povo judeu como um todo. São os sumos-sacerdotes que entregam Jesus a Pilatos, que puxam o coro pedindo a libertação de Barrabás e a crucifixão de Cristo. Quanto aos demais judeus, os que estão presentes ao julgamento são instigados pelos fariseus, mas enquanto Jesus carrega a cruz, a multidão se divide, e muitos choram o destino de Cristo. Mel Gibson inclusive não legendou a frase "que seu sangue caia sobre nós e nossos filhos", que está na Bíblia e que cristãos mais radicais usam como pretexto para atitudes anti-semitas.

A Paixão seria anti-semita se jogasse nas costas de todo o povo judeu a responsabilidade direta pela morte de Jesus, mas não o faz. Comparando, afirmar que o filme de Mel Gibson é anti-semita equivale a dizer que A Lista de Schindler, por exemplo, é um filme anti-alemão.

Afinal, quem matou Jesus?
Segundo a doutrina católica, Jesus morreu por causa dos pecados de toda a humanidade, independentemente de religião, raça, sexo ou época. Por isso, o Catecismo da Igreja Católica diz que todas as pessoas são culpadas pela morte de Jesus. No entanto, há uma diferença entre ser culpado e ser autor. Autores são aqueles diretamente envolvidos na morte de Jesus: Judas, o apóstolo que o entregou (ao lado, detalhe de um afresco de Giotto mostrando a traição de Judas); os líderes judeus que tramavam a morte de Jesus; a multidão de judeus que, incentivada pelos sacerdotes, pediu a libertação de Barrabás e a condenação de Jesus; o governador romano, Pilatos, que ordenou a crucifixão; e os soldados romanos que o crucificaram.




Acima: Cristo Carregando a Cruz, de Hieronymus Bosch (1450-1516), e cena de A Paixão de Cristo.

Por que há cenas no filme que não estão na Bíblia?
Os evangelhos não foram a única fonte de Mel Gibson ao fazer o filme. Ele também se baseou em antigas tradições católicas, como a Via Sacra - 14 (ou 15, para quem inclui a ressurreição) estações que recordam a paixão de Cristo, com cenas como a do encontro de Jesus com sua mãe e a de Verônica, a mulher que enxuga o rosto ensangüentado de Cristo. Escritos de santos também inspiraram o roteiro, e a principal fonte não-bíblica é a A Amarga Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo (também conhecida como Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus), de Anna Catharina Emmerich. Foi de lá que saiu, por exemplo, o nome do mau ladrão e a cena em que a mulher de Pilatos dá toalhas à Virgem Maria e a Maria Madalena para que enxuguem o sangue de Jesus deixado no pátio da flagelação.

Quem foi Anna Catharina Emmerich?
Uma freira alemã que nasceu em 1774 e morreu em 1824. Quando tinha 29 anos, entrou para a ordem dos agostinianos, e em 1812 teria tido visões em que Jesus lhe aparecia. Anna Catharina viu a vida e a paixão de Cristo, e o resultado dessas visões foi colocado no papel pelo poeta Clemente Bertano, que esteve ao lado da religiosa por alguns anos. Durante um êxtase, a freira teria recebido os estigmas - marcas nas mãos, nos pés e no tronco, como as sofridas por Cristo na cruz (os "estigmatizados" mais famosos foram Francisco de Assis e o padre Pio de Pietralcina). Duas comissões médicas atestaram que as feridas eram autênticas.

A Igreja Católica não exige que seus fiéis acreditem nas chamadas "revelações privadas", como a de Anna Catharina Emmerich - nem mesmo em aparições aprovadas pelo Vaticano, como as da Virgem Maria em Lourdes ou em Fátima. Existe um processo de beatificação (o passo anterior à canonização, quando uma pessoa é declarada santa) da freira alemã, interrompido em 1928 quando foram encontrados sérios erros doutrinais em seus escritos. Em 1972, o processo foi retomado e ainda não foi concluído.

Por que a figura do diabo aparece tantas vezes?
Na Bíblia, o demônio só aparece para tentar Jesus quando ele passa 40 dias jejuando no deserto. Mas alguns santos e teólogos, em seus escritos, supõem que Cristo tenha passado por tentações muito fortes durante suas últimas horas. Primeiro, no Jardim das Oliveiras, quando Jesus, com medo da morte, pede a Deus que afaste dele o cálice (o sofrimento); e especialmente na cruz, quando Jesus se sente abandonado por todos, inclusive por seu Pai (e por isso pergunta "por que me abandonaste?"). O demônio também aparece a Judas, o traidor, na forma de crianças que o atormentam. A tentação, no caso, é a do desespero: Judas acha que seu crime foi tão grande que não pode ser perdoado. O filme faz o contraste com outro apóstolo, Pedro, que negou Jesus por três vezes, mas confiou no perdão.

O filme é tremendamente violento, mas como saber se os acontecimentos se passaram assim como aparecem na tela?
A Bíblia não descreve com detalhes os castigos pelos quais Jesus passou, mas historiadores e médicos que se debruçaram sobre o assunto providenciaram descrições adequadas. O francês Pierre Barbet escreveu um livro, lançado no Brasil com o nome de A Paixão de Cristo Segundo o Cirurgião, em que descreve os suplícios pelos quais Jesus passou do ponto de vista médico, comprovando que a violência a que Cristo foi submetido foi realmente intensa. Suas fontes são o Sudário de Turim, que os católicos acreditam ser a mortalha que envolveu Jesus no sepulcro, e estudos que mostram os costumes da época de Jesus. A crucifixão (e os castigos que vinham antes dela) era uma pena tão bárbara que a lei romana proibia que ela fosse aplicada a cidadãos romanos - na época de Nero, o apóstolo Pedro também foi crucificado (de cabeça para baixo, pois não se achava digno de morrer igual a Cristo), mas Paulo, que era cidadão romano, foi decapitado. É uma opinião quase unânime que a cena mais chocante de A Paixão de Cristo não é a crucifixão em si, mas a flagelação (à esquerda, Flagelação de Cristo, de Caravaggio).

Como era a flagelação? Mel Gibson não exagerou nesta cena?
O padre Manuel Solé, autor de O Sudário do Senhor, diz que a relíquia de Turim mostra marcas de 120 golpes fortes. Os romanos usavam um instrumento chamado flagellum taxillatum, que tinha três ramais que terminavam em bolas de metal com relevos e unidas por arame (alguns desses flagelos foram encontrados em escavações). Essas bolas de metal arrancavam a pele do condenado. O sofrimento era ainda maior porque o supliciado tinha as mãos amarradas a uma coluna baixa, forçando-o a curvar-se para baixo, esticando a pele das costas - na igreja romana de Santa Praxedes há uma coluna trazida da Terra Santa por um cardeal no século XIII e venerada como a Coluna da Flagelação (foto). O médico italiano Pier Luigi Bollone, que também estudou o Sudário, contou 600 pequenas contusões como resultado da flagelação. Mel Gibson usa como referência um trecho do profeta Isaías, que os cristãos interpretam como uma referência ao sofrimento do Messias, segundo o qual o "servo sofredor" já não tinha aparência humana.

Mel Gibson tem sido retratado pela imprensa como um católico "tradicionalista". O que é isso?
Em 1969, o Vaticano mudou a liturgia da missa para aquilo que se conhece hoje, com as orações nas línguas de cada país e o padre voltado para o povo, entre outras alterações. Vários católicos, no entanto, preferem a liturgia anterior, também chamada "Tridentina" (porque foi criada depois do Concílio de Trento, no século XVI), que consideram mais reverente que a atual, e por isso são chamados "tradicionalistas". Há vários grupos tradicionalistas, alguns deles inclusive separados da Igreja Católica (o chamado "cisma"), como a Sociedade de São Pio X, o mais famoso deles. A Fraternidade de São Pedro (que celebra missas semanalmente em São Paulo) e a Fraternidade São João Maria Vianney (na cidade carioca de Campos), por outro lado, estão em situação regular. Os mais radicais chegam a dizer que a missa adotada em 1969 é inválida, ou seja, não é uma verdadeira missa.

E quanto ao pai de Mel Gibson e suas declarações polêmicas sobre o Holocausto?
Hutton Gibson é, na verdade, um sedevacantista. O termo vem de uma expressão latina usada quando não há um papa ("sede vacante" é o período entre a morte de um papa e a eleição de seu sucessor). Os sedevacantistas acham que o Concílio Vaticano II mudou a doutrina da Igreja e, portanto, abandonou a fé. Para eles, o último papa legítimo foi Pio XII, enquanto João XXIII (o papa que convocou o Concílio Vaticano II) e seus sucessores seriam ilegítimos por não serem verdadeiros católicos. Mas não há nenhuma indicação de que Mel Gibson concorde com seu pai nesse sentido; o cineasta inclusive levou o filme para que o papa João Paulo II o visse.

A Igreja Católica mudou seu ensinamento sobre os judeus no Concílio Vaticano II?
Alguns veículos de imprensa publicaram que a Igreja Católica tinha condenado o anti-semitismo e absolvido os judeus pela morte de Jesus apenas no Concílio Vaticano II (1962-1965). Mas, na verdade, o anti-semitismo já havia sido condenado em outras ocasiões, como na encíclica Mit Brennender Sorge, de Pio XI (mas por trás da qual estava seu secretário de Estado, Eugenio Pacelli, futuro Pio XII), escrita antes da Segunda Guerra Mundial.

Apesar de haver clérigos anti-semitas, como um arcebispo eslovaco da década de 40 para quem o Holocausto era um castigo divino pela morte de Jesus, o anti-semitismo, ou a noção de que todo o povo judeu, de todas as épocas e locais, era mais culpado pela morte de Cristo que os outros pecadores nunca fez parte da doutrina católica. No século XVI, o catecismo do Concílio de Trento já dizia: "Esta culpa [pela paixão de Cristo] parece maior em nós [católicos] que nos judeus, já que, de acordo com o apóstolo [autor da Epístola aos Hebreus] se eles soubessem, jamais teriam crucificado o Rei da Glória; enquanto nós, pelo contrário, professando conhecê-Lo [a Cristo], negamo-Lo pelas nossas ações, de certo modo colocando mãos violentas sobre Ele."